A ORAÇÃO VEM DO CORAÇÃO
- Publicado em segunda-feira, 18 maio 2020 11:21
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A oração pertence a todos: aos seres humanos de cada religião, e provavelmente também àqueles que não professam nenhuma.
A oração nasce no segredo de nós mesmos, naquele lugar interior que muitas vezes os autores espirituais chamam «coração».
A rezar, por isso, em nós não está algo de periférico, não uma nossa faculdade secundária e marginal,
mas está o mistério mais íntimo de nós próprios.
É este mistério que reza. As emoções rezam, mas não se pode dizer que a oração seja só emoção.
A inteligência reza, mas rezar não é só um ato intelectual.
O corpo reza, mas pode falar-se com Deus inclusive na mais grave invalidez.
Por isso, é todo o ser humano que reza, se reza com o seu “coração”.
A oração é um impulso, é uma invocação que vai para além de nós mesmos:
algo que nasce do íntimo da nossa pessoa e se distende,
porque perceciona a nostalgia de um encontro.
Essa nostalgia que é mais do que uma carência, mais do que uma necessidade: é um caminho.
A oração é a voz de um “eu” que anda às cegas, que caminha às apalpadelas, à procura de um “Tu”.
O encontro entre o “eu” e o “Tu” não se pode fazer com as calculadoras: é um encontro humano,
e muitas vezes anda-se às apalpadelas para encontrar o “Tu” que o meu “eu” está à procura.
A oração do cristão nasce de uma revelação: o “Tu” não permanece envolvido no mistério,
mas entrou em relação connosco.
O cristianismo é a religião que celebra continuamente a “manifestação” de Deus,
ou seja, a sua epifania.
As primeiras festas do ano litúrgico são as celebrações
deste Deus que não fica oculto,
mas que oferece a sua amizade aos seres humanos.
Deus revela a sua glória na pobreza de Belém,
na contemplação dos Magos,
no Batismo no Jordão, no prodígio das bodas de Caná.
O Evangelho de João conclui com uma afirmação sintética o grande hino do prólogo:
«A Deus nunca ninguém o viu: o Filho unigénito, que está no seio do pai, é que o revelou» (1,18).
Foi Jesus que nos revelou Deus.
A oração do cristão entra em relação com o Deus do volto terníssimo, que não quer incutir medo algum aos seres humanos.
Esta é a primeira característica da oração cristã.
Se os seres humanos estavam desde sempre habituados a aproximar-se de Deus algo intimidados,
algo amedrontados por este mistério fascinante e tremendo, se se tinham habituado a venerá-lo com uma atitude servil,
semelhante à de um súbdito que não quer faltar ao respeito ao seu senhor, os cristãos, em vez disso,
dirigem-se a Ele ousando chamá-lo de maneira confiante com o nome de “Pai”.
Aliás, Jesus usa a outra palavra: “Papá”.
O cristianismo baniu da relação com Deus toda a relação “feudal”.
No património da nossa fé não estão presentes expressões como «sujeição», «escravidão» ou «vassalagem»;
mas palavras como «aliança», «amizade», «promessa», «comunhão», «proximidade».
No seu longo discurso de adeus aos discípulos, Jesus diz:
«Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe aquilo que faz o seu senhor;
mas chamei-vos amigos, porque tudo aquilo que ouvi do Pai vos dei a conhecer.
Não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos constituí, para irdes e dardes fruto, e o vosso fruto permaneça;
para que tudo aquilo que pedirdes ao Pai no meu nome, vos seja concedido».
Ora, isto é um cheque em branco: «Tudo aquilo que pedirdes ao meu Pai no meu nome, vos será concedido»!
Deus é o amigo, a aliado, o esposo.
Na oração pode estabelecer-se uma relação de confiança com Ele,
tanto mais que no Pai-nosso Jesus nos ensinou a dirigir-lhe uma série de pedidos.
A Deus podemos pedir tudo, tudo; explicar tudo, contar tudo.
Não importa se na relação com Deus nos sentimos em falta: não somos amigos corajosos,
não somos filhos reconhecidos, não somos esposos fiéis.
Ele continua a querer-nos bem. É isso que Jesus demonstra definitivamente na última ceia, quando diz:
«Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós».
Nesse gesto, Jesus antecipa no cenáculo o mistério da cruz.
Deus é aliado fiel: se os seres humanos deixam de amar, Ele,no entanto,
continua a querer bem, ainda que o amor o conduza ao Calvário.
Deus está sempre próximo da porta no nosso coração, e espera que lho abramos.
E por vezes bate ao coração, mas não é invasivo: espera.
A paciência de Deus connosco é a paciência de um papá e de uma mamã.
Sempre próximo do nosso coração, e quando bate fá-lo com ternura e com muito amor.
Ele não conhece o ódio.
Ele é odiado, mas não conhece o ódio.
Conhece só o amor.
Este é o Deus a quem os cristãos rezam.
Este é o núcleo incandescente de toda a oração cristã.
O Deus de amor, o nosso Pai que nos espera e nos acompanha.
Papa Francisco | Audiência geral, 13.05.2020 | Fonte: Sala de Imprensa da Santa Sé | Trad.: Rui Jorge Martins
https://www.snpcultura.org/a_oracao_e_de_todos_provavelmente_tambem_dos_nao_crentes.html
Marc Chagall, Le Fils Prodigue sur Toile, 1976.