UMA QUARENTENA DE PALAVRAS?
- Publicado em quinta-feira, 16 abril 2020 22:15
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Que perguntas é que o nosso presente me coloca?
Obviamente, não serei o único com interrogações… O nosso presente está na crise do coronavírus, e ainda que estejamos envolvidos pela névoa que torna incertos os contornos do futuro,
mesmo nesta situação podemos e devemos interpelar-nos, para responder de maneira sábia…
Quem será a primeira pessoa que desejo voltar a abraçar quanto terminar a quarentena?
Este jejum dos contactos induz-nos, inevitavelmente, a examinar as nossas relações, colocando em evidência aquelas que para nós,
no fim de contas, são as mais vitais. Esperamos que, depois, não as esqueçamos.
Qual é a coisa que verdadeiramente me faz mais medo em todos estes acontecimentos?
Esta pergunta, em certo sentido, é a mesma da primeira, sob uma perspetiva mais sombria, a do medo da perda.
Ou pode desalojar outros medos recônditos em nós, que talvez nos digamos solidamente crentes.
Pois bem, façamos sair todos estes medos, chamando-os pelo nome, e decidamos enfrentá-los com as armas da fé, da esperança, do abandono nas mãos de Deus, Podemos vencê-los.
Tenho realmente vontade de voltar à normalidade?
Uma pergunta surpreendente, que me faz um pouco corar de vergonha, sobretudo se penso nos pobres mortos, nos médicos e nos enfermeiros na trincheira,
na crise económica que está para chegar…no entanto, não é um acaso que seja esta a pergunta que mais vezes nestes dias ouvi formular inclusive por outros.
A verdade é que estávamos demasiado habituados ao stress, a vidas alienadas sempre a correr, aos afetos familiares que se viam só à noite ou ao fim de semana.
Como seria belo poder levar consigo os espaços de novidade adquiridos, quando tivermos ultrapassado a crise!
https://www.snpcultura.org/qual_sera_a_primeira_pessoa_que_desejo_voltar_a_abracar_quanto_terminar_a_quarentena.html
Este é o tempo para as palavras que ainda não tivemos coragem de dizer, afirma cardeal Tolentino
O que nos podem ensinar romances e narrativas em tempos de epidemia? Que o humano tem insuspeitas capacidades de resistência quando colocado perante o mal, o caos?
Um dos poderes mais importantes que as histórias têm – e isto é aquilo que a literatura nos oferece: um extraordinário arquivo de histórias
– é o de funcionar como espelhos da nossa realidade.
Lemos as histórias e sentimo-nos compreendidos, porque nelas encontramos descrita uma experiência equivalente àquela que fazemos,
e pela qual, muitas vezes, ainda não encontrámos palavras, ou as palavras certas.
A situação de emergência global desencadeada pela pandemia apanhou-nos a todos impreparados.
Por este motivo, no início sentíamos todos a necessidade de parábolas já escritas ou mostradas pelo cinema que contassem experiências semelhantes.
Esta é uma maneira de domar o medo do desconhecido. Mas depois demos um passo em frente.
E começámos a desejar novas parábolas que ajudassem a interpretar e a dar um sentido ao nosso sofrimento mais profundo.
Creio que o papa Francisco foi um mestre extraordinário.
Aquela celebração de sexta-feira à noite na praça de S. Pedro vazia foi a parábola mais poderosa e necessária para estes tempos.
Francisco, abraçando o vazio e a solidão, é como se os tivesse exorcizado: começámos, assim, a olhar o vazio de outra maneira.
Isto demonstra como a fé é uma parábola capaz de tocar e curar o coração humano.
Nos jornais e nas redes sociais está a escrever-se e a falar-se muitíssimo sobre a pandemia do coronavírus.
Não nos arriscamos também a fazer “má literatura”, ou “má televisão”, sobre uma situação objetivamente trágica?
Como é enfrentado o trauma?
Porque, em substância, é disto que falamos quando falamos da pandemia: um trauma, isto é,
uma agressão inesperada para a qual não tínhamos defesas e que devastou a nossa imagem do mundo.
Uma das coisas importantes a fazer num percurso de cura, segundo dizem os psiquiatras, é contar a alguém a nossa história.
Por este motivo, este momento de pandemia é um tempo de palavras, de relatos que se acumulam, de narrações que se sobrepõem.
Provavelmente é “má literatura”, mas não importa, creio que terá um efeito terapêutico significativo. Aquilo que aconselho é isto: façamos deste momento um momento para falar.
Mas não pela palavra repetida e esgotada, pelos comentários às imagens que enviámos pelo WhatsApp, quase sem pensar.
É essencial que este seja o tempo para as palavras que desejaríamos ter dito e que talvez ainda não tenhamos dito, aquela palavra de amor que foi adiada,
quela gratidão pela vida do outro que não tivemos ainda a coragem de exprimir.
Este é o momento. Pode aplicar-se ao que está a acontecer a categoria bíblica da “provação”? O desespero – não a fragilidade – é o exato contrário da fé?
Este é, certamente, um momento de “prova”, em que todos somos chamados a uma resposta eticamente qualificada.
O papa Francisco recorda muitas vezes um princípio, segundo o qual «o tempo é superior ao espaço».
Este princípio é de grande sabedoria, porque não absolutiza o presente, mas coloca-o em relação com o passado e, sobretudo, com o futuro.
Temos um futuro! O discurso da fé ajuda-nos a abraçar a fragilidade, a não temer a fragilidade, mas ajuda-nos também a sentir de novo
aquela palavra que Deus disse a Abraão: «Levanta os olhos da terra e conta as estrelas».
Este é também o momento de olhar as estrelas. Ou como dizia a mística Etty Hillesum, no diário que escreve no campo de concentração de Westerbork,
este é o momento de «olhar os lírios do campo».
A esperança não pede a tradução em gestos concretos, em decisões operativas que dizem respeito ao destino da coletividade, inclusive a nível político?
Para muitos, a pergunta sobre aquilo que nos espera no termo desta pandemia é talvez ainda mais angustiante do que aquilo que estamos a experimentar no presente…
É importante darmo-nos conta que o mundo já não voltará a ser aquilo que era, e que há um novo percurso que devemos seguir.
Mas para isto temos de reforçar a nossa experiência comunitária.
É juntos, todos unidos, sem descartar ninguém, sem deixar ninguém para trás, que seremos capazes de enfrentar os imensos desafios que nos esperam.
Não tenhamos dúvidas: a única verdadeira “imunidade de grupo”, de que tanto se fala, é o amor, a justiça social, a construção de um mundo mais humano.
Todas as outras “imunidades de grupo” são precárias e só agravarão a crise.
Este é momento de caminhar juntos, redescobrindo o significado concreto de palavras como nação, humanismo, vida comum, confiança.